04/04/2015

Pequena crônica sobre racismo velado (mas nem tanto)

Eu estava com uma colega de trabalho, certa vez, e começamos a conversar sobre o planejamento urbano de Toronto. A cidade, embora grande, parece ter um certo ar de cidade média, ou mesmo pequena, por conta da grande quantidade de casas e pequena quantidade de edifícios. Mas isso está mudando rapidamente por conta da construção de mais e mais arranha-céus (diga-se de passagem - a maioria horríveis). Conversávamos sobre uma área específica da cidade onde há uma loja muito famosa chamada Honest Ed's que será fechada em breve, pois o dono faleceu e a familia não quis assumir. O terreno onde está a loja é imenso e nele serão construídos restaurantes, escritórios, condo's e prédios com apartamentos para aluguel.



Pois é, aqui existem prédios em que todos os apartamentos são alugados e esse tipo de edifício atrai imigrantes recém-chegados, o que, segundo minha colega, era preocupante.

"por quê?" eu perguntei, embora eu soubesse que é porque é foda esse monte de "imigrante sujo"  que está invadindo Toronto. Eu vi esse pensamento se formando na cabeça dela.

Daí ela mandou essa:

- Não querendo falar mal, mas imigrante chega aqui, não respeita nada, não fala inglês, sai fazendo sujeira e destruindo a propriedade dos outros....

E ela me olhava com um olhar que um pouco se desculpava (não você que é limpinha), um pouco procurava em mim uma cumplicidade naquele discurso (porque, afinal, eu sou limpinha).

E ela continuou, falando como os imigrantes chegavam e, porque a comida aqui é cara mesmo, eles começavam a plantar comida nas varandas e isso destruia as varandas que, de tempos em tempos, tinham que ser derrubadas e reconstruídas.


Esse aí tem a maior cara que ta destruindo o modo de vida canadense
e a propriedade alheia, claro!

- Mas o que é que têm as plantas a ver com a destruição de varandas?

- É que esse pessoal fica jogando água nas plantas e essa água entra no concreto, congela e destrói as varandas.

- Mas como é que a água congela se não dá pra plantar no inverno? E como é que a água cai no chão, se tudo é plantado em containers?

- Você realmente acha que eles vão lá na Home Depot comprar o container certo pra fazer horta? Esse pessoal não respeita nada! Eles pegam lata, balde, caixa de ovo, qualquer coisa, e saem plantando! E se acham muito espertos! E depois as varandas caem e quem paga por isso?

Ahhhh! Esses imigrantes não prestam mesmo.

Se você se pergunta da minha reação... bom eu ria.
Fazer o quê?

Depois dessa conversa ela me perguntou sobre o que eu ia fazer no final de semana.
Infelizmente eu tive que mentir.

A verdade é que eu e mais duas imigrantes sujas íamos fazer um workshop sobre como fazer hortas urbanas em containers e em pequenos espaços.... como varandas em edifícios altos.


Esses containers são meus... :P





Só um adendo: dos 20 inscritos no curso apenas eu e minhas amigas éramos imigrantes. O resto tudo canadense - quase todos brancos.

Só rindo

Canadá idealizado

Quando estou no Brasil vira e mexe pessoas me felicitam por morar no Canadá: "lá não tem corrupção", "o sistema de saúde funciona", "lá não tem pobreza", "o povo é bem educado", "lá o povo é mais aberto" e por aí vai.

Eu gosto de comparar o Brasil com o Canadá para ilustrar meus pontos de vista esquerdistas e liberais - se aqui tem algum leitor que não me conhece, saiba que sou de esquerda, liberal, bissexual, feminista e pra frentex e que isso molda todo o meu discurso sobre qualquer coisa. "Esteje" avisado.


Tenho verdadeiro gosto em falar das coisas que funcionam aqui. Tipo: gosto de me sentir segura na rua, de não ser tratada como um pedaço de carne. Gosto de poder tratar minha namorada normalmente, em qualquer espaço. Fico feliz de saber que aqui a maioria dos partos é natural e que toda mulher tem o direito ao aborto. E, pra irritar conservadores, gosto de falar dos seguros governamentais daqui - pois que, quando chegamos, usamos por um ano o Bolsa Família canadense. Esse Bolsa Família - que tem tempo indeterminado e é maior quanto maior for a familía, vejam vocês, fornecia um pouco mais de mil dólares mensais para a nossa, além granas extras pra transporte, prática de esportes, compra de roupas e de mobilia/eletrodomésticos para casa. Essa grana nos permitiu nos estabelecer em Toronto e começar nossa vida. Eu gosto de me usar como exemplo disso. Especialmente para pessoas próximas que se referem a pessoas que usam o Bolsa Família como vagabundas.

Apesar das muitas diferenças, cada vez mais vejo muitas semelhanças. O ser humano é ser humano em qualquer parte.


Uma coisa que o canadense tem de muito parecido com o brasileiro é o racismo dissimulado. Ok, o racismo aqui é diferente - e, vale a pena saber, a dissimulação também - mas não menos presente.

No Brasil o racismo é voltado principalmente contra a população negra e indígena - em certos lugares do país. Também poderíamos falar de um racismo contra alguns imigrantes - imigrantes não-brancos, porque os brancos são mais que bem vindos. De qualquer forma, quando falamos de racismo no Brasil normalmente estamos falando de pessoas negras, pardas ou indígenas.



Toronto é a cidade mais multicultural da América. Aqui se falam mais de 140 idiomas (português é a 5a língua, além de inglês e francês, mais falada da cidade) e as minorias visíveis estão por toda parte. Metade da população da cidade é composta por pessoas nascidas fora do país. Aqui, além dos meus muitos amigos brasileiros e alguns canadenses, convivo ou tenho amizade com chineses, portugueses, filipinos, mexicanos, americanos, ingleses, haitianos, persas, russos, indianos, albaneses, gregos, israelenses, vietnamitas, jamaicanos, argelinos, venezuelanos e gente sei lá mais de onde.

As culturas, as religiões, as línguas, os cheiros, as comidas, o jeito de se expressar... Toronto é um caldeirão cultural que, por vezes, é incrível e, por vezes, nefasto. 

Aqui de repente, deixei de ser branca e virei latina. Mas... sou latina como os mexicanos ou guatemaltecos ou bolivianos são latinos? Me pergunto muito isso porque não sou visivelmente latina. Até eu abrir a boca, posso perfeitamente ser canadense. E mesmo assim, quando falo com meu sotacão, posso ser quebecois. Então mantenho certos privilégios brancos e não consigo me assumir totalmente "latina".Tenho me referido a mim mesma como white latina, que eu achei que me define bem.



Mas quando vêem meu nome impresso.... daí é óbvio que não sou daqui. Aliás, meu nome, que tem 4 partes, primeiro nome, sobrenome da mãe, conectivo, sobrenome do pai.... meu nome é praticamente incompreensível por aqui. E pretendo mudá-lo quando já estiver com a cidadania resolvida, porque essa confusão dá trabalho.

Muitos canadenses odeiam as minorias visíveis, embora a maioria negue isso sempre. Os que mais ouço falar mal são os indígenas, negros, chineses, portugueses e indianos. E o mais engraçado é que os imigrantes também têm problemas uns com os outros.

Um amigo querido, brasileiro, trabalha na rampa da Delta Airlines, ou seja, é um daqueles caras que joga tua mala pra dentro do avião e pra fora do avião. Ele adora o trabalho dele que, embora pague pouco, o permite viajar de graça para qualquer lugar - e ele e a esposa aproveitam isso ao máximo. De qualquer forma, esse meu amigo, fazendo graça com os companheiros de rampa, mandou essa:

- O melhor é que todo mundo aqui é imigrante, todo mundo aqui sofre discriminação, mas todo mundo aqui se odeia.

Todos riem.

Pois é.

Bom, esse post foi introdutório ao próximo.
Fim.